Viagem Infinita

‘Viagem Infinita’ é a exposição do 1º ano do Doutoramento em Artes Plásticas [FBAUP] que encerra o ano letivo de 2024/2025.

Inaugura, terça-feira, dia 08 de julho, às 16h, Ficando aberta até 25 de julho de 2025, no Instituto Pernambuco-Porto (Rua das Estrelas 143, 4150-762 Porto), e conta com a participação de:

Carla Santos Carvalho
Filipa Frois Almeida
Filipa Tojal
Joana Fins Faria
José Oliveira
Mafalda Santos
Maria Catarina
Miguel Leal
Pedro Cunha
Rebecca Moradalizadeh
Ricardo Gritto

O Jakob Maersk em chamas. Porto, 29 de Janeiro de 1975.

Vertigens, viagens e desventuras

No dia 29 de Janeiro de 1975, perto da hora do almoço, estava com os meus pais e o meu irmão num café, na marginal do Porto, quando de repente o grande vidro que abria para a avenida e para o mar tremeu com uma explosão. O café esvaziou-se e corremos todos para a rua, para descobrir uma densa coluna de fumo negro, à direita, na direcção do Porto de Leixões. Fomo-nos aproximando da praia e dessa coluna de fumo, sempre acompanhados pelo ruído de explosões e de outros sons, umas vezes mais surdos, outras mais estridentes. Era o Jakob Maersk que ardia, um petroleiro com 260 metros de comprimento, um navio que então me pareceu enorme. O crude, que vertia em grandes quantidades para o mar, ardia sobre a água. Mais de perto, observámos as pequenas cabeças dos tripulantes que nadavam à superfície e os esforços inglórios dos barcos dos bombeiros tentando apagar o fogo. O navio partiu-se depois em três e afundou-se. O cheiro era intenso e o mar continuou a arder por mais de 2 dias, num triste espectáculo que encheu as praias de gente curiosa. As dezenas de milhares de litros de petróleo contaminaram a costa e esse foi um verão atípico, com as rochas cheias de crude e peixe morto a dar à costa.

Os naufrágios fizeram parte da minha infância. Antes das alterações que mais tarde foram feitas no Porto de Leixões, não havia Inverno sem um naufrágio. Os barcos aproximavam-se da costa e encalhavam nos bancos de areia ou nos rochedos. Entre as operações de resgate e as mutações na paisagem — cada acidente trazia um novo destroço que convivia com o nosso Verão —, estes naufrágios quebravam a monotonia e traziam-nos o mundo para o nosso colo. Um ano a praia ficava cheia de crude, noutro coberta de bananas do Panamá, noutro ainda de madeiras exóticas da Amazónia. Era toda uma política da logística global, dos restos do Império e das tragédias próprias da técnica que vinha ter connosco, explicando-nos um mundo que, em plena infância, ainda só conseguíamos adivinhar.

Não sei se foram os naufrágios à porta de casa ou apenas uma curiosidade inata pelo desvio, que me levaram a ler, muito cedo, a História Trágico-Marítima, uma colectânea do Século XVIII com relatos de naufrágios de naus portuguesas nos dois séculos anteriores, uma espécie de narrativa anti-heróica que confrontava a história (e as histórias) que nos contavam na escola. Como remniscência desses tempos, foi do capítulo VIII da História Trágico-Marítima que me lembrei ao pensar neste texto, um capítulo onde se relatam as desventuras da Nau Santo António, saída da Capitania de Pernambuco em direcção Lisboa, aonde nunca chegaria.

Odillon Redon, L’oeil, comme un ballon bizarre se dirige vers l’infini, 1882.
Litografia, 27.9 x 19.7 cm

A artificialização do olhar é indissociável da geometria, como imposição de uma medida ao mundo. Do mesmo modo, a geografia é uma escrita do mundo e um dos modos da sua invenção. Tal como Leon Batista Alberti usava um olho alado como emblema, talvez anunciando já uma panóptica, uma visão desincorporada e autónoma a pairar sobre as nossas cabeças, a ideia de um um olhar vertical que só a aeronáutica (e, depois, a astronaútica) ou o olhar dos pássaros nos poderia oferecer tornou-se a nossa bitola para representar e interpretar o mundo.  Foi também assim que, ao longo dos últimos séculos, os nossos esforços para cartografar o mundo nos levaram a inventar o espaço geográfico. O mundo, desenrolado em cima de uma mesa, quase se transformou numa abstracção, assim criando o espaço e apagando os lugares. Alguns chamam globalização a esta visão do mundo como um todo aplanado e feito de equivalências espaciais. Com efeito, na moderna cartografia, dos mapas convencionais ao google maps nos pequenos ecrãs dos nossos telemóveis, movimentamo-nos num espaço sem lugares, uma espécie de mapa em que tudo se equivale. Deslocamo-nos já não para ir de A a B, mas apenas como um ponto em trânsito numa espécie de mesa infinita onde tudo se transformou em pura representação. No entanto, nunca nos movimentamos tanto e tão rápido em volta do globo. A ideia de viagem transformou-se em movimento infinito e perdeu o sentido da deslocação entre lugares.

Em 1997, há quase 30 anos, escrevi uma carta a Paul Virilio convidando-o para publicar na Virose, num número que então preparávamos em volta da ideia de velocidade. A sua resposta, muito bartlebiana, foi um ambíguo preferia não, numa carta escrita a tinta permanente onde ele me lembrava os perigos da rede das redes. Não voltei a insistir e fizemos o número com outros contributos. Guardei essa carta comigo todos estes anos. Voltei a encontrá-la há uns meses e percebi, finalmente, no meio de todos os acontecimentos recentes, porque é que o seu tecno-pessimismo era em muitos aspectos premonitório, sobretudo quando falamos da internet, da aceleração das ligações e da primazia dos algoritmos e da concentração destas novas formas de hard e soft power nas mãos de uns poucos. Ao longo dos anos, com diferentes formulações, Virilio repetiu até à exaustão que cada artefacto técnico é um acidente à espera de acontecer, que cada tecnologia traz consigo um acidente específico. Cada objecto técnico terá então direito ao seu próprio naufrágio, inscrito no momento da sua invenção. É o naufrágio que acorda esses objectos e que revela o que estava escondido. O naufrágio é da natureza da técnica.

É aqui que o naufrágio regressa, afirmando-se como acontecimento libertador, como coisa que nos acorda do sono hipnótico provocado por esse movimento perpétuo e sem destino. O naufrágio, ou o acidente, num sentido mais lato, como condições necessárias e inerentes aos vectores de aceleração do mundo — do barco ao avião, da luz à fibra óptica que a transporta, ou das invisíveis nuvens de dados aos hiperactivos data centers, fontes de calor que dão corpo a uma nova arte do motor —, são aquilo que nos faz parar e nos obriga a regressar ao lugar e às poéticas do lugar. Quando no dia 28 de Abril deste ano a península Ibérica ficou às escuras e tudo, ou quase tudo, parou de funcionar, não pareceu o fim de um mundo, mas o princípio de alguma outra coisa. Durou pouco tempo, mas nessas horas, entre a manhã e o princípio da noite, naufragámos na nossa própria realidade e, de repente, voltámos a ter ruas, bairros e vizinhos, voltámos a ter lugares, portanto. A rádio regressou da sua pré-obsolescência e, por algumas horas, tivemos os pés assentes no chão. Tanto que eu regressei a casa caminhando horas a fio sobre a linha de comboio, o trajecto mais curto em direcção a casa e a melhor forma de não me perder durante a viagem.  Ao princípio da noite, como num sonho que termina abruptamente, voltámos a entrar em movimento e perdemo-nos de novo no espaço entre as coisas.

É por isso que, desviando as palavras de Fernando Pessoa ou de Caetano Veloso[1], devemos dizer naufragar é preciso, naufragar é preciso para descobrir o mundo e as suas coisas, é preciso naufragar para viver plenamente, para continuar em movimento.

Miguel Leal

Berlim, 30 de Junho de 2025


[1] Navigare necesse, vivere non est necesse são palavras atribuídas ao General Romano Pompeu Magno, ao incentivar os seus marinheiros a cumprir o seu destino e a sua missão, numa formulação heróica e trágica que nos interessa desviar.